Comeu e quer ir
ao mar? Vá, mas vá com calma
Morrer de
congestão é um mito. Mais um. Quando muito morre-se por desmaiar dentro de
água. Portanto tente não entrar na água muito rápido para evitar o choque
térmico. Evite entrar
no mar de repente se estiver muito quente
“Mãe, pai, já está na hora de ir ao banho?” Se
não ouviu esta frase dos seus filhos, talvez a tenha repetido vezes sem conta
aos seus pais. Depois, a resposta que nenhuma criança quer ouvir: “Não. Ainda
não fizeste a digestão.” Mas será que temos mesmo de esperar ou isto
não passa de um mito urbano? Ou uma mentira “inocente” que ajuda os
pais a manterem os filhos mais tempo na areia?
É verdade que
quando estamos a fazer a digestão há uma maior quantidade de sangue dirigida ao
nosso sistema digestivo para que o processo decorra rapidamente e sem problemas
de maior, por isso Rui Capucho, médico na Unidade de Saúde Pública de
Chaves, recomenda que “haja algum tempo entre a refeição e o banho de
mar”. Mas quanto tempo? Uma digestão de três horas meia, que tantas vezes
ouvimos, depende muito da quantidade de comida. O médico diz ao Observador que
a “digestão de uma refeição leve fica feita em uma hora ou hora e meia”.
Esperar pelo
fim da digestão faz ainda menos sentido – imagine-se – para as crianças, diz ao
Observador o pediatra Mário Cordeiro. “Isso justifica-se nos casos de
adultos que comem muito (uma sardinhada ou uma feijoada), bebem bastante,
depois ficam ao Sol a dormitar e, de repente, entram dentro de água. Aí, sim,
pode haver uma alteração dos fluxos sanguíneos da parte gastrointestinal para
outras, havendo a chamada ‘paragem de digestão'”, alerta o médico. “Não é o
que se passa com as crianças, que comem muito pouco (mesmo as que comem bem),
não bebem álcool e vão-se molhando na praia a pouco e pouco, não estando a
dormir ao sol.”
“Molhar aos
poucos é uma recomendação sempre avisada”, lembra
Mário Cordeiro. Porque se o fluxo de sangue está mais concentrado no sistema
digestivo, entrar na água fria pode fazer com que este se desvie para os órgãos
vitais, na tentativa de manter a temperatura normal destes órgãos. O mesmo
aconteceria se depois de uma grande refeição fosse fazer exercício físico
intenso – o sangue era desviado para os músculos. Por isso, o pediatra
recomenda, para adultos e crianças, fraccionar as refeições e não comer
demasiado. É que lutar contra as ondas do Oeste parece quase uma aula intensa
de ginásio.
Quando o
sangue é desviado do estômago, isso pode dificultar o processo digestivo ou
mesmo parar a digestão. Podem acontecer enjoos ou vómitos, refere o médico de
saúde pública, mas “congestões e mortes por entrar na água depois de
comer é um mito”. “Do ponto de vista científico não existe congestão”,
confirma Mário Jorge Santos, presidente da Associação de Médicos de Saúde
Pública. O maior risco são as diferenças muito bruscas de temperatura – como um
mergulho na água fria depois de muito tempo ao Sol -, que podem provocar um
choque térmico.
O choque
térmico vai provocar uma reação vasovagal – uma reação repentina lhe leva o
sangue para as extremidades em vez de o levar para o cérebro. “[Esta
reação] provoca uma baixa de tensão arterial repentina e pode assim provocar um
desmaio. E um desmaio dentro de água pode resultar em morte”, explica Rui
Capucho. É daqui que parece vir a dita expressão: “morte por congestão”.
Rui Capucho
explica que os desmaios devido choque térmico também acontecem frequentemente
com idosos quando estão ao pé da lareira e vão para o exterior durante o
inverno frio (ou vice-versa). Mário Jorge Santos ainda acrescenta ainda que “a
maior parte das mortes por afogamento têm a ver com as condições do mar ou com
questões de saúde, como problemas de coração ou diabetes”.
Os alimentos ou bebidas gelados podem
dificultar a digestão, mas sobretudo naqueles que comeram muito à refeição
Como o
problema aqui é o choque térmico, um duche depois da refeição – a não ser que
pense em tomar um banho de água gelada – não tem qualquer problema. E não
precisa de ser nos 20 ou 30 minutos depois da refeição – mais um mito. E já
agora também não se deixe cair nas crenças populares de que não pode cortar o
cabelo, a barba ou as unhas depois de ter comido.
Já com as
bebidas muito frias ou com os gelados durante a digestão é melhor ter um pouco
mais cuidado. “Sendo o estômago uma ‘panela de
cozer’, deitar algo muito frio, pode ‘encruar’ o que lá está dificultando a
digestão, tal e qual uma panela de arroz. É por isso que, nas culturas
orientais, se acompanham as refeições com chá morno ou quente”, explica Mário
Cordeiro. “[Adicionalmente,] muita quantidade de líquidos pode diluir os sucos
gástricos, tornando a digestão estomacal menos eficiente e mais lenta.” No
entanto o pediatra não considera que isso seja um problema grave para as
crianças, porque estas comem pouco.
O pediatra
termina deixando algumas recomendações para adultos e crianças. Estejam
“atentos a sinais como enjoo, má disposição, dores de cabeça, vómitos”. “Quando
a água está muito fria molhar por partes, nomeadamente a nuca, os ombros e o
peito.” Evite também estar muito tempo ao Sol, especialmente sem chapéu, e
deixe as refeições pesadas para os dias encobertos em que decide não ir à
praia.
Publicado por "Observador" em 28/08/2015